Os lados do balcão

quinta-feira, agosto 20, 2015

Foto por Daniel Hernanz.
(Tenho uma pequena tendência – acredito que comum a quase todo ser humano – a protelar as coisas. Esse texto, por exemplo, já deveria ter sido escrito há tempos. Mas nunca é tarde para falar sobre assuntos como este; muito pelo contrário: eles impõem a sua importância e clamam por serem debatidos.)

Na quinta-feira passada, três de julho, estreou a segunda temporada do 'Na Moral', programa apresentado por Pedro Bial e que se propõe a debater os mais variados tipos de assunto, contando com uma bancada de convidados e a plateia. No episódio em questão, o tema era "identidade nacional". A discussão me pareceu superficial, e eu estava prestes a mudar de canal quando o cientista político Alberto Carlos Almeida, ao ser questionado sobre o polêmico "jeitinho brasileiro", disse: "Estar certo ou errado não é algo absoluto, depende de quem está do outro lado do balcão." Nunca fui convidada para compor a bancada de um programa de auditório na Globo, mas, se eu estivesse lá, pediria licença para exprimir minha discordância.

A Copa do Mundo já está com os dias contados, mas até o momento de abertura dos jogos, as redes sociais transbordavam com uma enchente de posts contrários à realização do evento, registrados com a famosa hashtag #NãoVaiTerCopa. O governo jogou a educação e a saúde pra escanteio e preferiu investir em estádios, fato que, somado aos "habituais" desvios de verba, fez com que a população exprimisse sua revolta nas ruas ou através do crescente ativismo de sofá. Nesse praguejar desenfreado e, por vezes, mais repetitivo que consciente, percebi que boa parte dos locutores do discurso em questão só enxerga a corrupção como problema nas macroesferas e não é capaz de enxergá-la – ou altamente capaz de ignorá-la – nas microesferas.

Há alguns dias, enquanto esperava pacientemente na fila da cantina escolar, não pude deixar de desviar a minha atenção das moedas e notas que estavam em minhas mãos para a menina que estava à minha frente. Um amigo dela chegou sorrateiramente, puxando conversa sobre um assunto tão aleatório quanto o clima, e se posicionou ao seu lado. Percebendo o seu real intento, ela não tardou em dizer "venha, fulano, eu já entendi o que você quer" e conceder a ele um espaço na fila. Eu conhecia aquele menino, ou melhor, conhecia o seu perfil no Facebook. Feminista, sempre se posicionou contra toda espécie de sexismo, racismo e corrupção, mas, pelo visto, não via problema em – nas palavras do cientista político Carlos Almeida – subverter uma regra informal. A Bíblia é realmente sábia quando diz “Por seus frutos os conhecereis.”

Numa outra situação, ao conversar com algumas colegas do curso de inglês sobre vestibulares e ENEM, uma delas confessou ter declarado carência quando prestou o último exame mencionado, ainda no segundo ano do ensino médio. Quando a questionei sobre sua atitude incorreta, a resposta veio rápida e simples: “Ué! Ano passado, o ENEM não me valia de nada. Se não poderia entrar numa universidade, por que pagaria a taxa de inscrição? Menti no preenchimento do questionário socioeconômico e tá tudo certo.” Está mesmo?

Tão triste quanto constatar a magnitude da flexibilidade da ética nos dias atuais é perceber que práticas como essas fazem parte do cotidiano do jovem brasileiro. Muitas vezes, a mesma geração que se indigna com os escândalos de suborno estampados nos jornais é a que, nas salas de aula, se cala mediante os acréscimos que recebeu na pontuação da prova devido a um erro de contagem do professor. Os mesmos que esbravejam ao tomarem nota de casos de lavagem de dinheiro, como se tivessem sido feridos, são os que não sentem o menor constrangimento ao serem beneficiados ilicitamente por relações de amizade ou parentesco.

Imagino que, em algum momento durante a leitura deste texto, você tenha se perguntado se eu estou ou não falando de duas coisas completamente diferentes. Fique com o último adjetivo, mas dispense o advérbio. O Senado, Congresso e gabinetes públicos podem não ter relação alguma com os lugares que você frequenta. Provavelmente seus erros nunca serão veiculados na TV e talvez só o seu travesseiro os conheça. Não é a escala, mas sim a essência das atitudes que está em questão. "O que constitui a natureza das coisas", segundo o dicionário, é a mesma em ambos os casos: o ato de corromper, ativa ou passivamente. E não importa de que lado do balcão você está.

Escrito em 2014.

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