Casquinhas medíocres

quinta-feira, agosto 20, 2015



Segundo o último CENSO do IBGE, 89,3% da população brasileira sempre carrega uns trocadinhos no bolso. 

Achar dinheiro no bolso está no meu (isso não tem nada a ver com o IBGE, aliás) TOP 10 melhores sensações da vida (acordar com o cabelo arrumado também). Como é bom perceber que aquele pedaço de pano não está vazio e que sua mão acariciou pequenas circunferências metálicas! Logo em seguida todas as moedinhas estão envoltas numa espécie de concha, e os dedos da sua outra mão prontificam-se a contá-las, conferindo a magnitude monetária do seu pequeno tesouro.

Nuvens gorduchas arrastavam seu peso pelo céu cinzento. Chuviscava de vez em quando. Gosto do tempo assim. Estética, social e culturalmente, aquele dia não tinha nada a ver com uma casquinha de baunilha. Mas quando o McDonalds grita o seu nome, do outro lado da rua, e você não só atende ao chamado, mas promove uma verdadeira operação de escavação no bolso da calça em busca de exatos dois reais, quem liga pra isso? Todo dia é dia de sorvete.

Entreguei todas as minhas moedas na mão de um homem desconhecido em troca daquela coisa cremosa gelada sustentada por um cone bege crocante. Dei bom dia e obrigada. Fui educada assim. Mas não sei quem educou aquele moço. Certamente não foram meus pais.

Toda vez que minha mãe está preparando o tradicional cachorro quente das sextas à noite, ela insiste em me tornar ciente de todo o processo, principalmente o cozimento das salsichas. Não que fazer hotdog seja demasiadamente difícil ou que eu seja tremendamente estúpida para absorver tal tarefa, mas uma etapa concernente a ela merece atenção em especial.

— Tá vendo isso? — ela diz enquanto segura a panela quente com uma toalha de prato — É água de salsicha.

Nesse momento, minha mãe projeta o corpo em direção a pia e inclina a panela. Vejo um líquido escorrer pelo ralo.

— Só serve pra isso: ser jogada fora. — ela olha para mim — Nunca seja água de salsicha na vida.

Ele estendeu as mãos e me entregou a casquinha. Dando à situação o toque de drama que esta merece, já sou bem grandinha e sei lidar com a decepção. Dei umas lambidas no sorvete e segui em frente rumo ao ponto de ônibus, mas não pude deixar de imaginar quantos sorrisos infantis aquele moço murchou com suas casquinhas medíocres. Quantas pessoas descobriram o prazer de achar dinheiro no fundo do bolso, da carteira, ou no chão, quem sabe, e fitaram aquele moço como sendo um conversor de pequenas felicidades — o tilintar de moedas pelo saboroso fechar de olhos à primeira lambida — e não foram devidamente correspondidas.

Ele não deu o seu melhor. Talvez porque nunca tenha recebido o melhor de alguém. Não sei, não o conheço. Mas, veja bem, é um ciclo: para receber, é preciso dar. Damos o que recebemos. Ele só precisava de mais um pouco. Mais um pouco de satisfação em servir.

“Eu não gostaria de receber uma casquinha assim.”

Alguns segundos a mais pressionando a alavanca.

Voilá. O primeiro passo para uma sucessão interminável de trocas.

É como uma equação. O sinal de igual no meio. 2x2 = 8/2. Não da mesma forma, mas na mesma medida. É assim que se dá. É assim que se recebe.

Quando eu tiver um filho, farei de todo sorvete uma oportunidade para contar uma história. Enquanto ele estiver compenetrado, com suas mãos de concha, somando cada centavo, afastarei seu cabelinho da testa e olharei diretamente em seus olhos. Ele já sabe o que vou dizer. Flexiono os joelhos e sussurro em seus ouvidos: "Nunca sirva casquinhas medíocres, querido."

Escrito em janeiro de 2014.

You Might Also Like

0 comentários